Gabinete de Ferramentas
As ferramentas manuais de marcenaria exercem fascínio sobre o marceneiro. Não apenas por sua beleza, mas sobretudo pela utilidade quando empregadas propriamente. As máquinas, que desde a primeira revolução industrial ditam a força produtiva, não conseguiram substituir uma boa ferramenta manual nas mãos de um artífice hábil.
Muitos marceneiros acreditam que suas ferramentas vão se impregnando de tal forma com a realização de sonhos, que elas adquirem alma.
E todos os artífices sabem que a ferramenta é uma extensão do seu corpo. A parte da ferramenta que toca a madeira está plenamente comandada por sua vontade. É inegável o laço que o marceneiro desenvolve com suas ferramentas manuais.
Não por outra razão os marceneiros “mundo a fora” se esforçam para guardar com muito cuidado suas ferramentas mais importantes. Os painéis abertos para ferramentas têm o inconveniente de deixá-las à mercê da poeira, que desenvolve mais rapidamente oxidação; guardá-las em baús durante muito tempo foi a solução encontrada por inúmeros artífices, principalmente por proporcionar mobilidade no transporte.
No entanto… nenhuma solução é tão digna às ferramentas quanto um gabinete (armário) a elas dedicado.
O gabinete por nós escolhido – com algumas alterações setorizadas – foi o estampado na revista Woodsmith n. 187, equipado com elegante porta tambor que guarnece o compartimento superior muito bem dimensionado, permitindo o acondicionamento das ferramentas manuais mais importantes. Já as 5 gavetas admitem a guarda de ferramentas pequenas.
As madeiras escolhidas para o projeto foram o cedro rosa (cedrela fissilis), a guajuvira (patagonula americana) e o jacarandá mineiro (Jacaranda cuspidifolia). Empreendemos a construção de 3 armários.
Nós começamos desdobrando a madeira de cedro em tábuas com espessura de ¾ de polegada. Além da precisão dessa medida, tivemos que ser rigorosos quanto ao esquadrejamento dos topos.
A estrutura do armário é feita com encaixe tradicional de marcenaria, chamado de lingueta no rasgo (Tongue and groove).
Realizamos todos os rasgos perpendiculares na medida de 3/8 de polegada, com a tupia.
Já as linguetas foram feitas na serra circular.
E a cada encaixe, verificamos o esquadro. Se a caixa não estiver toda esquadrejada, teremos vários problemas no futuro, principalmente nas gavetas e na porta.
A porta é composta por várias tiras de madeira coladas firmemente em um canvas (tecido sintético de poliéster com algodão, normalmente utilizado como telas para pinturas). Esse tecido é bem forte e sua malha é ideal para colagens.
O funcionamento dessa porta exige trilhos laterais por onde ela corre até uma curva, que a faz dobrar para trás do móvel. Estes trilhos devem ser feitos com precisão e perfeitamente alinhados um ao outro. Por isso fizemos um molde em MDF para servir de gabarito para a tupia.
Nós prendemos o molde no lado interno das tábuas de cedro que fazem as laterais do gabinete e o percorremos com tupia, equipada com fresa de 3/8 de diâmetro, regulada para abrir trilho de igual profundidade.
Com todas as operações de usinagem concluídas, passamos à verificação de todos os rasgos (grooves) e linguetas (tongues), ajustando-os para uma união perfeita. E para tanto, utilizamos uma plaina chamada de “Guilherme” (Shoulder Plane). Note que a utilização da tupia necessita de muita perícia. Se o colar escapar do molde, a fresa realiza o desbaste de forma irregular. Nestes casos, precisamos corrigir o trilho com enxertos de madeira.
Com todos os encaixes perfeitamente ajustados, passamos à montagem da caixa, colando todas as partes de maneira permanente.
Com a caixa de cedro maciço perfeitamente montada e esquadrejada, passamos a nos dedicar à fabricação das gavetas em madeira de Guajuvira.
Todos os encaixes foram feitos na serra circular e ajustados com plainas manuais.
Depois de montadas com cola, fizemos um rebaixo ao entorno da frente das gavetas, para encaixar molduras feitas de jacarandá mineiro.
Depois que as tiras de jacarandá foram devidamente encaixadas, com juntas de topo em 45 graus, nivelamos a moldura ao corpus da gaveta com plainas manuais. Sempre deixamos a madeira aplicada décimos de milímetros maior, para nivelar depois.
Depois de estruturadas e com frentes emolduradas, passamos a nos debruçar sobre os puxadores de gaveta. O projeto original sugere puxadores metálicos de embutir, muito utilizados no meio náutico. Atendendo aos pedidos dos alunos, revolvemos projetar puxadores em madeira maciça de jacarandá, para acompanhar as linhas do móvel.
Com o projeto concluído, foi muito fácil a execução dos puxadores. Lembrando que as proporções seguiram elementos já constantes do projeto, para que os puxadores apresentassem congruência de design.
As gavetas foram concluídas e ajustadas com precisão em cada vão a elas dedicado no armário. Com essa tarefa superada, passamos a nos concentrar na porta tambor.
Essa porta é composta por várias tiras de madeira coladas lado a lado em um tecido espesso e resistente. Como já o dissemos, escolhemos o canvas para este fim.
Como a colagem precisa ser perfeita, tivemos que desenvolver um gabarito para pressionar todas as tiras lado a lado e então aplicar cola de contato alifática (também conhecida como cola de sapateiro), revestindo o verso da porta com canvas. Note que não aplicamos cola nas bordas que seguem no trilho, para não aumentar o atrito no acionamento da porta.
Todas as tiras têm ¾ de largura e foram cortadas em desdobro de blocos selecionados, para um perfeito espelhamento de figurações dos veios. Essa técnica é chamada de “wood book-matched”. Basta cortar o bloco ao meio que ambas as faces reveladas terão desenhos rebatidos, espelhados.
Essa técnica é agradável aos olhos e transmite uma sensação de planejamento e isometria por padrões fractais, reconhecidos cientificamente por serem produtores de sentimentos de bem-estar e tranquilidade. O famoso pintor Pollock foi um grande entusiasta dos fractais na pintura.
A técnica de book-marched encerra exuberância única e concentra toda a sina humana em uma imagem: controlar o caos.
Cada corte na madeira revela uma forma única e caótica, mas quando posta ao lado de outra espelhada, o caos da unicidade encontrou um corredor a ser percorrido com os olhos. O que era único ganhou par, contornos e congruência.
Com a porta tambor perfeitamente colada, passamos aos ajustes para um correr suave e equilibrado. Para este fim, tivemos que adicionar mais réguas ao conjunto. Quando a porta vai para trás do armário, mais peso é produtivo para ajudar a levantar a porta. Peso demais, contudo, determina uma força violenta contra o batente. Para se chegar a um equilíbrio, precisamos de testes.
Depois de ajustada a porta, produzimos uma testada de paragem e guia de trilho:
A técnica de book-matched foi aplicada na fabricação da porta e das gavetas inferiores. As três gavetas menores na parte de cima tiveram sua frente tiradas de uma só régua de madeira, o que nos permitiu uma linha com padrões de continuidade.
Com as peças usinadas e já aplicadas no seu lugar, passamos a nos concentrar na moldura que encabeça o alto do móvel e neste caso também realizamos alterações no projeto.
Escolhemos um formato em um jogo moldureiro para aplicar em um cabeçote de tupia:
O trabalho da tupia na produção da moldura foi incrível. Depois de realizadas as usinagens pertinentes, fizemos um rasgo atrás da moldura, para a colocação de uma tira de compensado de ¼ que serviu como alma de encaixe ao redor do armário.
Para arrematar os topos, utilizamos o ângulo de 45 graus, o que permitiu montagem elegante nos cantos da moldura.
Por fim, inserimos suportes “furo de fechadura” (Keyhole) para pendurar o móvel na parede. Embora pareçam frágeis, são feitos em aço muito resistente e geram uma força de atrito estática no encontro da madeira com a parede.
Por fim, depois do afagamento (utilização de plaina de afagar n. 4) e raspilhamento, lixamos até a lixa 220 e aplicamos óleo dinamarquês (Danish Oil).
E para arrematar com um toque de sofisticação, instalamos uma fita de led interna, que vai fazer brilhar nossas joias quando forem penduradas no painel interno.
Usamos uma cantoneira de alumínio com pintura eletroestática branca – para refletir a luz do led para baixo e sem fugas superiores. Revestimos a cantoneira com uma tira de guajuvira de 1/8 de espessura. Ficou como um bandô de cortina e muito bem adequado ao com junto da obra.
Por fim, agradecemos aos ilustres artífices sr. Alberto e Nilton que percorreram esse caminho encantador com muita aplicação e capacidade técnica.
Vinícius Carvas