O Processo de Marcenaria
"Qualquer marceneiro, ainda que não tenha estudo formal, obedece a um processo de marcenaria”
“Não há como ir para a bancada de marcenaria iniciar um projeto sem que você tenha exatamente a ciência de tudo que precisa fazer. ”
“Apenas marceneiros com muita experiência podem intuir ângulos, dimensões e proporções adequadas do mobiliário apenas verificando fotografias.”
"Todas as coisas são fruto de processos, estão em processos e sempre sofrerão processos. "
Desde Parmênides que se percebe que nenhuma coisa surge do nada (ex nihilo, nihil fit); logo, necessariamente, todas nascem de outras.
Não sem razão Bruno Munari intitula seu livro sobre design: “Das coisas nascem coisas”.
Esse nascimento se dá através de um processo. Todas as coisas são fruto de processos, estão em processos e sempre sofrerão processos.
Mas não temos como nos ocupar de todos os processos que giram ao entorno dos móveis. Seria atividade hercúlea e pouco proveitosa em termos práticos neste momento.
Por exemplo, eu preciso conhecer o processo evolutivo da madeira para conseguir executar uma cadeira?
As primeiras árvores surgiram no período Devoniano, cerca de 385 milhões de anos atrás, sendo a primeira árvore chamada de Wattieza. De um modo geral, a madeira surgiu como uma necessidade do vegetal elevar-se para competir por energia solar.
Este conhecimento é um deleite de cultura, mas não é importante para se fazer uma cadeira.
Nós também podemos conhecer os processos que uma cadeira vai sofrer depois de constituída: desde o ataque de elementos xilófagos, às forças brutas de pessoas violentas que vão se jogar ao sentar-se. E este exercício de futurologia é também pouco útil?
Neste caso nos parece que não. Avançar em algumas possibilidades é muito importante para o marceneiro entregar qualidade. Mas estas questões do futuro do móvel, não são processo de marcenaria também.
Bom… Já nos debruçamos sobre dois grandes senhores do móvel: o passado e o futuro… Vamos agora cuidar do presente… Tratar do processo de marcenaria propriamente dito.
O processo de marcenaria é aquele realizado pelo marceneiro, que consiste em empregar a madeira e demais insumos numa cadeia ordenada de fases até criar um móvel. É isso que vamos estudar a partir de agora.
Antes de entrarmos na análise de todas as fases do processo de marcenaria, convém investir algum tempo para assentar questões gerais.
Qualquer marceneiro, ainda que não tenha estudo formal, obedece a um processo de marcenaria. Ainda que ele não saiba expressar o seu labor em palavras, ele o desenvolve mediante atos ordenados até o acabamento final no móvel.
O conhecimento do processo de marcenaria vai te dar uma visão geral, de como uma árvore se transforma em um móvel e isso é muito importante para você se orientar: o que precisa conhecer, comprar e investir treinamento. O processo de marcenaria é tão importante, que nosso curso tem sua metodologia toda calcada nele.
Uma outra observação importante, é que as fases do processo de marcenaria não são todas necessárias, mas sempre dependentes do projeto que se está executando.
Ex: em um móvel desmontável não tem fase de colagem; já na execução do projeto de um determinado aparador, você pode precisar de uma fase de laminação de madeira; num baú de ferramentas, a fase da colocação da fechadura; já na construção de uma cadeira, não etc. Então é o projeto que vai determinar a existência ou inexistência de algumas fases.
Feitas estas observações gerais, passaremos às fases indispensáveis do processo de marcenaria:
1 – Fase 1 – Projeto
Escolhida a tipologia mobiliária (cadeira, mesa, aparador, armário etc.) incumbe ao marceneiro ter um projeto para seguir.
Esse projeto o marceneiro mesmo pode fazer ou valer-se de um já elaborado por outra pessoa.
No primeiro caso, recomendamos que você estude Design de mobiliário para compreender os elementos fundamentais de constituição os móveis: estrutura, materiais, ergonomia, proporções dimensão simbólica, função, estética, forma etc.
Caso você nunca tenha estudado design, não é problema. Você pode obter um projeto detalhado em livros de marcenaria, periódicos (notadamente os americanos, como Fine Woodworking e Woodsmith) ou até mesmo procurar na internet por projetos gratuitos.
No início muitas pessoas acreditam que fotografias são o suficiente para se iniciar uma obra de marcenaria. É um engano. Apenas marceneiros com muita experiência podem intuir ângulos, dimensões e proporções adequadas do mobiliário apenas verificando fotografias.
Os projetos podem ser com vistas técnicas (o que convém alguma experiência com desenho técnico) ou podem ser baseados em vistas tridimensionais com perspectiva “explodida”, representando cada peça que compõe o mobiliário.
Como essa atividade de interpretação de projetos requer uma certa experiência, recomendo que você comece com móveis bem simples. Quanto mais simples o projeto, mais fácil vai ser a compreensão do que você deve fazer.
Aliás, é importante deixar isso claro. Não há como ir para a bancada de marcenaria iniciar um projeto sem que você tenha exatamente a ciência de tudo que precisa fazer.
Você pode não ter a experiência ou o domínio da técnica para executar cada fase e isso é perfeitamente normal, porque isso é construído no fazer. Mas você tem que ter representação mental clara e inequívoca do que deve ser feito e da ordem.
Aqui é bem proveitoso o lema da nossa bandeira: ordem e progresso. Se você não sabe o que fazer e não compreende a ordem do procedimento, não vai progredir.
2 – receita ou romaneio
De acordo com o projeto, o marceneiro verifica no seu estoque as peças de madeira que podem lhe atender ou procura uma madeireira.
A receita consiste numa listagem com as dimensões das peças necessárias, sempre com algum excesso, por conta da natural atividade de modelamento nas máquinas e ferramentas. Esse excesso é chamado de sobra. A sobra, em se tratando de madeira nobre e rara, deve ser sempre guardada. Em se tratando de madeira ordinária, deve ser descartada.
Se no seu estoque não existir madeira nas dimensões adequadas, você precisará comprar madeira em loja especializada. Muitas vezes acabamos por adquirir madeira em quantidade superior à do projeto, para obras futuras. Há que se ter em mente, que a madeira pode ficar anos sem utilização, ocupando espaço. É importante sempre realizar essa ponderação entre formação de estoque e efetivo uso.
3 – Plano de corte e corte bruto
Estando a madeira em quantidade e dimensão adequadas ao projeto, o marceneiro precisa realizar um plano de corte para ter a menor perda possível de material.
Em linhas gerais, deve cortar as peças um pouco mais compridas e um pouco mais largas e espessas do que cada componente descrito no projeto. Esta primeira operação de corte bruto. É realizada na serra de fita e serra de meia esquadria, ou mesmo com serrotes.
Às vezes, convém que o marceneiro realize a operação de aplainamento antes ou já tenha uma peça endireitada no seu estoque, razão pela qual é mais conveniente o corte em máquina mais precisa, como a serra circular.
O corte bruto é uma redução da madeira muito próxima aos limites do projeto: exemplo: uma peça de 50 cm x 15cm, x 5cm para duas pernas de cadeira.
4 – Conformação de face plana
Feito o corte bruto nas dimensões aproximadas, o próximo passo consiste em tornar uma das faces da madeira completamente plana.
Neste momento, usamos uma plaina manual número 6 (fore plane) ou 5 (jack plane), ou plaina elétrica ou uma desempenadeira .
A desempenadeira é máquina estacionária. Diz-se estacionária pois ela fica parada enquanto a madeira passa por ela; já a plaina elétrica e demais ferramentas são chamadas de “manuais” por que a madeira fica estacionada e as ferramentas que passeiam por ela guiadas pelas mãos.
Depois de aplainar uma das faces (a secção mais larga de uma peça de madeira), vamos ao próximo passo.
5 – Conformação do ângulo reto entre face e borda
O ângulo mais importante da marcenaria é o ângulo reto. Ele é a base, o supedâneo para a grande maioria das máquinas e o ponto de partida para o cálculo de todos os outros ângulos de um projeto.
Este passo consiste no aplainamento da borda da peça de madeira, com a face referenciada em 90º na cerca da desempenadeira.
Este ângulo de 90º estabelecido entre duas superfícies planas, é aferido por um esquadro. Caso o ângulo não se apresente, a máquina deve ser verificada e o procedimento de aplainamento da borda repetido.
O ângulo reto entre face e borda pode ser obtido por plainas manuais com algum esforço. A plaina manual mais adequada para esse procedimento é a de número 7 ou número 8 (essa numeração segue um catálogo antigo de uma fabricante de ferramentas que se tornou referência, a Stanley). É possível a obtenção do ângulo reto com plainas menores, como 6 e até 5, mas depende do comprimento da madeira e da expertise do operador. Quanto maior o comprimento da madeira, mais necessária se faz uma plaina com sola comprida.
6 – Conformação de face oposta em paralelismo
Depois de obter uma face plana e uma borda esquadrejada (conformada em 90º), a face oposta precisa ficar exatamente paralela a esta face inicialmente planificada. Esta atividade se chama de “desengrossamento”.
O desengrossamento pode ser realizado através de processo com plaina manual, ou plaina desengrossadeira, chamada mais propriamente de “Plaina de espessura” .
Para ser realizado com plaina manual, o marceneiro precisa marcar com um graminho uma linha nas bordas e topos da peça de madeira, tendo como referência a face maior já planificada. E em atenção à linha, realizar o desengrossamento da face oposta com plainas manuais.
Ao final desta atividade, a madeira vai possuir duas faces opostas planas e paralelas. A espessura a ser verificada é a mesma em toda a peça.
Com esta operação, a espessura da madeira já é a determinada pelo projeto. Se trata da espessura final.
A madeira, ao final desta operação, vai possuir duas faces planas, paralelas e com uma borda conformada em 90º.
A madeira que possui apenas um ângulo reto (conformado entre uma face e uma borda) se chama de “esquadrejada”.
A madeira que possui 4 ângulos retos, com bordas e faces paralelas, se chama madeira “aparelhada” (blank). É exatamente esse o próximo passo.
7 – Cortes na serra circular de bancada
Com a peça precisamente regulada em duas faces paralelas e uma borda em ângulo reto, podemos usar com segurança a serra circular para cortar a outra borda ainda bruta.
Podemos tratar essa borda também na desengrossadeira ao invés de utilizar a serra circular. Mas se a prancha não tiver espessura suficiente para ser equilibrada na desengrossadeira, a serra circular é que deve fazer esse serviço. E claro, também podemos cortar no serrote e ajustar na plaina manual, com algum empenho de tempo e vontade.
Como resultado dessa operação, teremos as peças de madeira conformadas em perfeito paralelismo. Teremos um paralelepípedo regular. Faces planas paralelas e bordas esquadrejadas. É o que se chama de “madeira aparelhada” ou “blank”. A peça, no entanto, ainda está um pouco mais comprida do que o exigido no projeto e com os topos brutos.
O próximo passo na serra circular, é cortar um dos topos de maneira transversal às fibras (topejar), no ângulo de 90º com as bordas e faces já ajustadas. Utiliza-se, ao invés da paralela da serra circular, o goniômetro ou um gabarito chamado trenó (crosscut sled ).
Outras ferramentas podem ser utilizadas para realizar este corte transversal, como serras de esquadria (manual ou elétrica) e até mesmo serrotes. O serrote deixa marcas no topo, sendo conveniente o aplainamento, máxime com uma prancha de esquadrejar (shooting board). Nesta prancha de esquadrejar (que é um gabarito que o próprio marceneiro constrói), a plaina corre apoiada em mesa, cortando a madeira em um ângulo de 90º.
Assim, realizado o primeiro corte de topo, faz-se a medição a partir dele, de acordo com o projeto. Riscamos com lápis a medida e a representação do corte na madeira e então cortamos o outro topo, conformando a peça no comprimento exato do projeto.
Todas estas operações requerem conhecimento das máquinas, técnicas e dispositivos de segurança. Todas estas operações transformaram a madeira bruta em madeira acabada.
8 – Atividade de colagem de painéis
A madeira acabada permite colagens de peças lado a lado com muita precisão. Caso o projeto requeira colagens para a formação de painéis, agora temos condição de realizar esse próximo passo.
9 – Atividade de encaixes
O próximo passo são as marcações para realizações de encaixes que vão compor a estrutura do móvel. Aqui há a necessidade de se deduzir uma ordem nestas operações. Cada projeto precisa ser compreendido para que o marceneiro decida qual o primeiro encaixe ou lavra a ser realizada.
Há que se pensar, sempre, na ordem destas operações, para que a realização de uma não impossibilite ou dificulte sobremaneira a realização de outra. Este entendimento é único em cada projeto.
O projeto é que “vai dizer” qual o tipo de encaixe a ser realizado. O marceneiro pode utilizar máquinas para a realização destes encaixes, como uma tupia ou serra circular ou mesmo ferramentas manuais, como serrotes e formões.
10 – Modelamento e ajuste final
Depois de realizados e testados os encaixes, o marceneiro deve desmontar o móvel e realizar a atividade de ajustes e modelamento final das peças de acordo com o projeto.
O modelamento consiste em conformação de uma borda em chanfro específico, convergência de faces ou bordas (tapering); corte de curvas decorativas etc.
11 – Afago, raspilhamento e lixamento
Afago ou suavização é atividade utilizada com plaina de afagar, para deixar a superfície da madeira sem defeitos ou marcas deixadas por outras maquinas (marca de serra, de facas de desempenadeira etc). Normalmente a plaina de número 3 ou 4 que desempenha essa função.
Raspilhamento é atividade realizada com raspilha de aço (card scraper), com objetivo de realizar operações de aplainamento bastante setorizadas. É muito utilizada para remoção de defeitos e reverso.
Lixar é uma atividade de acabamento às vezes penosa. É longa e tediosa, mas tem grande importância no resultado final. Lixamento é um processo de abrasão progressivo em que o marceneiro refina a superfície do lenho revelando sua beleza, para receber os compostos de acabamento final (vernizes, óleos etc).
12 – Montagem.
A montagem consiste na atividade centrípeta para compor o móvel. Em regra se utiliza de cola para unir permanentemente as peças de madeira.
Existem muitas espécies de cola; inclusive as reversíveis, muito utilizadas em lutheria.
Há outras formas de montagem que dispensam a cola, como parafusos, cunhas de madeira, pregos e outras ferragens.
A montagem por cola exige o grampeamento da madeira, que muitas vezes precisa ser feito em partes. Neste momento, é sempre importante que o marceneiro deduza uma ordem a ser executada, para que a colagem de determinada peça não dificulte ou torne impossível a montagem de outra.
A colagem e o grampeamento devem ser sempre verificados com instrumentos, como suta e esquadro, para que depois de seca a cola o móvel não apresente distorções angulares incompatíveis com o projeto.
Para todo o processo de marcenaria há uma ordem que precisa ser deduzida em cada projeto. Tudo deve ser feito ao seu tempo, passo a passo. Se você seguir um bom processo, as máquinas vão produzir os resultados desejados.
13 – Ajustes gerais.
Depois da colagem, alguns ajustes são importantes, como limpeza do excesso de cola, regulação de desníveis entre encaixes, defeitos na madeira etc. Quando tudo for realizado, o marceneiro ainda precisa aplicar algum tempo inspecionando de perto o móvel a procura de defeitos a serem corrigidos e por vezes realizar o lixamento final.
14 – Aplicação do acabamento.
Este é um dos momentos mais agradáveis. É onde o marceneiro realça a beleza da madeira com aplicação de óleos, vernizes, steins.
Este é o processo geral de marcenaria, bem comprimido. Cada uma destas fases possui segredos mil, técnicas e experiência.
Espero que este material seja um norte para que você aprofunde sua pesquisa e habilidade prática.
Vinícius Carvas