Poltrona Avesso
A cadeira é a tipologia de mobiliário mais fascinante e desafiadora. É o móvel por excelência.
A cadeira é praticamente o único objeto que reclama movimento a cada uso. Ela precisa ser firme, forte e ter uma disposição ergonômica adequada.
A poltrona Avesso foi pensada para ser a soberana na sala de jantar.
A lógica do usuário se dá ao revés. Ele tem como móvel principal em uma sala a mesa de jantar e entende as cadeiras como vassalas da mesa.
Ninguém fala: vou comprar cadeiras de jantar…. Pensam sempre na mesa, como um grande núcleo gravitacional por onde circundam as cadeiras.
Tivemos a ousadia de inverter essa ordem.
A mesa de jantar que planejamos é mínima e praticamente resta desmaterializada por conta da estrutura das cadeiras.
As cadeiras devem ser as principais atrizes na sala. Elas servem ao corpo e às pessoas. A mesa é apenas um apoio.
Já o nome, “Avesso” se dá por conta da sistemática de encaixes aparentes que adotamos. Com inspiração em um antigo movimento chamado arts and crafts, resolvemos exibir a forma construtiva da cadeira sempre que possível, deixando fácil para as pessoas intuírem as uniões das madeiras do móvel.
Seria – portanto – como uma roupa do lado do avesso. As costuras que via de regra não são exibidas, mas escamoteadas no verso aqui são mostradas.
Ainda cumpre esclarecer, que optamos por um espaldar baixo, pois nossa intenção era fazer com que a cadeira fosse embutida debaixo do tampo da mesa, para que o conjunto fosse compacto e permitisse a livre circulação de pessoas ao redor quando não usada para a finalidade de jantar.
Essa escolha é difícil de ser conciliada com a necessária ergonomia que o móvel deve oferecer. Por conta disso, à época do projeto, realizamos prototipagem.
E entendemos que a cadeira de fato teve uma pontual redução do elemento ergonômico, não obstante a variação de ângulos testados no espaldar. Sendo assim, tivemos que revestir o encosto com estofo, para tornar a cadeira mais confortável.
É de se ressaltar, que a finalidade da cadeira também nos permitiu essa escolha. Como o ato de jantar determina uma projeção do corpo para o tampo da mesa, sequer utilizamos o encosto quando comemos.
Os braços, por sua vez, também favorecem o descanso, permitindo longas conversas à mesa após o término do jantar.
Se fosse uma cadeira de finalidade contemplativa ou de leitura, certamente seria inadequada. E claro, neste caso, como não teríamos por finalidade o ato de jantar, não teríamos cogitado sequer dessa necessidade de embutir a cadeira embaixo da mesa.
A exposição destes motivos é importante para que você compreenda que o ato de projetar envolve uma série de questões e finalidades que devem ser ponderadas para que a escolha seja acertada. E pelos motivos destacados, acreditamos que nossa proposição foi adequada à finalidade do móvel.
Feitas estas explanações gerais sobre a poltrona, passaremos agora à tecitura de uma apertada síntese de todo o trabalho desenvolvido pelos alunos Lélio Hall e Ana Chequeti.
Nós iniciamos o projeto aplainando as pranchas brutas de Guajuvira (Patagonula ameriacana). Depois reduzimos todas elas às peças necessárias para a construção: o aro, pernas, travessas, braços e encosto.
Assim, obtida toda a receita em madeira, começamos modelando o aro da cadeira (a parte onde fica o estofo do assento).
Com a madeira na largura, espessura e comprimento exigidos pelo projeto, passamos à lavra do encaixe de rabo-de-andorinha. O grande segredo deste encaixe é fazer as marcações de maneira bem precisa.
Com as marcações realizadas, passamos ao corte da tábua das caudas. E depois de cortada, transferimos para a peça que vai receber a lavra dos pinos. Há uma grande controvérsia à respeito deste encaixe. Muitos marceneiros preferem começar pelos pinos ao invés das caudas.
O que você precisa ter em mente, é o procedimento de execução de qualquer encaixe: primeiro fazemos uma das peças e não tocamos mais nela… Depois fazemos a outra em razão desta primeira, ajustando-a até a perfeita congruência. É o que chamamos de princípio do ajuste. Assim, a primeira peça lavrada é modelo para a segunda.
Nós preferimos as caudas como modelo, pois são mais difíceis de serem ajustadas. O espaço entre as caudas geralmente é bem pequeno, o que dificulta o acesso com os formões. Assim que terminamos as caudas, transferimos a medida para a tábua dos pinos. Nesta, o acesso de ferramentas é muito mais amplo, o que facilita sobremaneira o ajuste.
É uma atividade que requer paciência. Não se trata de um encaixe feito com muita velocidade. Para que ele fique firme, o marceneiro precisa se atentar a muitos detalhes e limpar muito bem os cortes.
Este foi o primeiro encaixe de rabo-de-andorinha executado pela Ana. Como ela fez duas cadeiras, ao todo executou 8 encaixes deste tipo. Impressionante a evolução quando você compara o primeiro encaixe com o último. Marcenaria é prática.
Com os encaixes do aro resolvidos, passamos à lavra das laterais para receber as pernas. Esse encaixe se chama de meia madeira em ângulo. Fizemos na serra circular, com um conjunto de lâminas chamado de dado blade
Com esta lavra resolvida, reproduzimos o mesmo corte angular nas pernas. Quando do encaixe, pernas e as laterais do aro restaram fortemente unidas. E para manter o encaixe estupidamente forte, atravessamos com uma espiga de travessa todo o conjunto.
Para um encaixe de excelência, convém chanfrar as arestas da espiga, para que ela penetre na fura com mais suavidade.
A conjugação de encaixes é muito importante para elevar a robustez da estrutura construtiva ao máximo possível. No projeto dessa cadeira nós pensamos não apenas no uso ordinário do móvel, mas sobretudo no seu abuso. Ela precisa aguentar uma pessoa subir no assento e ficar de pé se necessário.
Aqui temos o detalhe da conjugação de encaixes. Notem que a perna, nas mãos do aluno Lélio, tem uma lavra angular congruente com outra no aro e a espiga se soma para robustecer a mecânica desta união.
Com as pernas firmemente presas no aro da cadeira, com travessa transpassando tudo, passamos a nos concentrar nos encaixes do encosto com os braços.
Elegemos um encaixe muito forte, chamado de espiga aberta (bridle joint):
Este encaixe é bastante decorativo e tem a sua mecânica denunciada pela forma aberta de suas lavras. Nossa intenção é comunicar a forma como a poltrona foi estruturada.
Nós realizamos a montagem prévia para conferir se toda a estrutura da poltrona se encontrava em perfeitas condições:
Com toda a estrutura em ordem, passamos à fase de modelagem das peças. Nos debruçamos sobre os chanfros laterais dos braços, que consistem num ângulo composto. Fizemos um gabarito para fazer essa usinagem na serra de mesa.
A seguir, realizamos o corte curvo do encosto na serra de fita, com uma disposição ângular para favorecer o conforto.
Seguimos para os cortes curvos dos braços e depois para os chanfros atrás do espaldar:
Concomitante ao trabalho de chanfro, iniciamos o estofamento em couro natural.
Temos aqui os moldes em MDF para o corte da chapa de compensado de 6mm que vai servir de base para o estofo.
Com tudo ajustado, batemos em definitivo as cunhas da espiga vazada com cunha, encaixe irredutível que une as pernas dianteiras aos braços da poltrona:
Com a poltrona toda colada e firme, iniciamos laboriosa atividade de nivelamento das uniões e ajustes em geral. Neste momento as plainas manuais foram essenciais.
Então chegamos ao ponto mais esperado: a aplicação do acabamento, que além de proteger a madeira, revela toda sua beleza. Escolhemos o óleo dinamarquês para este fim:
Eu agradeço aos alunos Lélio Hall e Ana Chequeti por percorrerem estas linhas com tanta maestria. Foram encantadores meses de desafio, perseverança e amizade.
Foi uma aventura inesquecível.
Muito obrigado.
Vinícius Carvas